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UM ACÓRDÃO DO "CARALHO"

  • JPM
  • 10 de mar. de 2017
  • 3 min de leitura

Um rápido vislumbre pela jurisprudência dos nossos tribunais permite facilmente concluir que os portugueses são tão zelosos da sua honra como criativos a ofender a honra dos outros. São inúmeros e diversos os processos de injúria ou difamação levados a tribunal.


No entanto, até à data, nenhum terá merecido uma análise tão meticulosa como o caso que agora se apresenta. Os factos são os seguintes:


No dia 4 de Agosto de 2009, cerca das 15h30, um Cabo da Guarda Nacional Republicana deslocou-se ao gabinete do seu 2.º Sargento de Infantaria, Comandante Interno do Subdestacamento respectivo, com o objectivo de solicitar autorização de troca de serviço com o colega X.

O senhor 2º Sargento de Infantaria não autorizou tal troca de serviço, por entender que a mesma originaria uma sobrecarga de trabalho para o colega X.

Perante tal recusa, o Cabo, em desabafo, e na presença do seu Comandante, terá proferido a palavra “Caralho”.


O Ministério Público entendeu que a palavra “caralho”, proferida pelo Cabo na presença do seu superior hierárquico, era injuriosa e ofensiva, e portanto deduziu acusação contra aquele, imputando-lhe a prática de um crime de insubordinação por outras ofensas, previsto e punível pelo Código de Justiça Militar.


Após requerimento do Cabo (arguido), o Juiz de Instrução não concordou com a acusação do Ministério Público, e entendeu que o caso não deveria sequer ir a julgamento. O Ministério Público recorreu da decisão, dando origem ao Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 28.10.2010, onde consta uma deliciosa análise etimológica da palavra em apreço.


Começa o Tribunal por se referir às origens da palavra:

«Segundo as fontes, para uns a palavra “caralho” vem do latim “caraculu” que significava pequena estaca, enquanto que, para outros, este termo surge utilizado pelos portugueses nos tempos das grandes navegações para, nas artes de marinhagem, designar o topo do mastro principal das naus, ou seja, um pau grande. Certo é que, independentemente da etimologia da palavra, o povo começou a associar a palavra ao órgão sexual masculino, o pénis. E esse é o significado actual da palavra, se bem que no seu uso popular quotidiano a conotação fálica nem sequer muitas vezes é racionalizada.»


Analisada a proveniência da palavra, o Tribunal discorre pormenorizadamente sobre os usos contemporâneos do termo, ilustrando a sua tese com exemplos bastante elucidativos:

«Com efeito, é público e notório, pois tal resulta da experiência comum, que CARALHO é palavra usada por alguns (muitos) para expressar, definir, explicar ou enfatizar toda uma gama de sentimentos humanos e diversos estados de ânimo.

Por exemplo “pra caralho” é usado para representar algo excessivo. Seja grande ou pequeno demais. Serve para referenciar realidades numéricas indefinidas (exº: "chove pra caralho"; "o Cristiano Ronaldo joga pra caralho"; "moras longe pra caralho"; "o ácaro é um animal pequeno pra caralho"; "esse filme é velho pra caralho").

Por seu turno, quem nunca disse ou pelo menos não terá ouvido dizer para apreciar que uma coisa é boa ou lhe agrada: “isto é mesmo bom, caralho”.

Por outro lado, se alguém fala de modo ininteligível poder-se á ouvir: "não percebo um caralho do que dizes"; e se A aborrece B, B dirá para A “vai pró caralho”; e se alguma coisa não interessa: “isto não vale um caralho”; e ainda se a forma de agir de uma pessoa causa admiração: "este gajo é do caralho"; e até quando alguém encontra um amigo que há muito tempo não via: “como vai essa vida, onde caralho te meteste?”.

Para alguns, tal como no Norte de Portugal com a expressão popular de espanto, impaciência ou irritação “carago”, não há nada a que não se possa juntar um “caralho”, funcionando este como verdadeira muleta oratória.

Assim, dizer para alguém “vai para o caralho” é bem diferente de afirmar perante alguém e num quadro de contrariedade “ai o caralho” ou simplesmente “caralho”, como parece ter sucedido na situação em apreço nestes autos. No primeiro

caso a expressão será ofensiva, enquanto que, ao invés, no segundo caso a expressão é tão-só designativa de admiração, surpresa, espanto, impaciência, irritação ou indignação (cfr. Dicionários da Língua Portuguesa da Priberam e da Porto Editora 2010).»


Claro que, depois desta magnífica fundamentação, a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa foi no sentido de absolver o Cabo da GNR, por considerar que a expressão proferida está dentro daquilo que vulgarmente se designa por “linguagem de caserna”, tal como no desporto existe a de “balneário”.


No entanto, mais do que o sentido da decisão, para a história ficará esta bela explanação, por parte de um tribunal, sobre as origens e utilizações da palavra “caralho”, e também a confirmação judicial de que, efectivamente, o Cristiano Ronaldo joga muito bem à bola.




 
 
 

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